As crônicas verdadeiras sobre as notáveis mulheres normais 1. ANA PAULA

Ana Paula nunca brincou de casinha.

E ninguém jamais disse pra ela não brincar; na verdade, as pessoas ao redor dela provavelmente nem notaram que “dona de casinha” não era parte do repertório de personagens dela. Mas ela podia se transformar a qualquer momento em enfermeira, secretária, professora, modelo de passarela, cantora, lutadora de karatê, pirata em caça ao tesouro, cabelereira, na própria mãe e até na She Ra.

Mas brincar de casinha… não fazia o menor sentido pra ela.

Quando brincava com suas panelinhas e colhia os matinhos e frutas do quintal da sua avó, era porque naquele dia ela era cozinheira de um restaurante, de um banquete da realeza ou, melhor ainda, havia dias em que ela podia ser uma ajudante de cozinha de primeira da vovó e mexer na comida de verdade.

Com as bonecas era um troca-troca de roupas sem fim porque a Barbie era realmente muito ocupada e tinha mil compromissos no mesmo dia já que trabalhava na televisão ou num escritório/hospital muito importante. Coitada, tinha dias em que ela só via o Ken à noite.

Ana fica muito intrigada quando as moças da sua idade (vinte e muitos) lhe descrevem sua vida sempre em torno de uma casa, de um homem, do desejo, ou melhor, da obsessão, em ter um bebê ou em torno dos três – o que é mais frequente.

Ela escuta aquelas histórias intermináveis sobre a preparação do jantar da terça-feira, aprende sobre todos os gostos do marido alheio, temores (pavores) sobre como é mais difícil engravidar depois dos trinta e técnicas de organização de armários. E ela escuta tudo isso, não por masoquismo, nem por mera educação. Não, Ana Paula é uma otimista. Ela tem esperança de que um dia estas narrativas tão, mas tão enfadonhas, atinjam o seu clímax. Ela aguarda ansiosamente o dia em que haverá uma reviravolta durante o jantar e ao invés de falar sobre o macramê dos porta-guardanapos, as moças terminem fazendo-a chorar de rir com uma receita tão mal sucedida que fez o prédio inteiro vomitar só com o cheiro, sobre como colocaram fogo na cozinha, beberam tanto vinho que acabaram comprando passagens pra Letônia ou fizeram sexo no sofá com a janela aberta. Relatos que permitissem à Ana deduzir que esses maridos são, na verdade, companheiraços, e que esses apartamentos recém decorados são lares cheios de alegria com o amor desses casais. E que o casamento é uma coisa legal pra caramba, apesar dos problemas.

Mas esse dia nunca chegou. São sempre largas Odisseias sobre governança doméstica cujos personagens coadjuvantes são centros de mesa, sousplats, pátina, badejos…

Os ferozes peixeiros do mal.

Os ferozes marceneiros do mal.

Ana Paula sente um desconfortável amargor na boca quando pensa nas mulheres da sua geração.

One thought on “As crônicas verdadeiras sobre as notáveis mulheres normais 1. ANA PAULA

  1. Isso porque Ana Paula não me conhece… Quando menina era como Ana Paula, minha Barbie (ou a réplica dela) viajava ao redor do mundo a trabalho, nunca casou de véu e grinalda. Aliás, teve vários namorados…

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