As crônicas verdadeiras sobre as notáveis mulheres normais 3. Patrícia

Patrícia tem 36 anos. É advogada e mãe do Léo, que tem um ano e meio.

Atualmente, nos fins de semana, o que Patrícia mais gosta de fazer, do fundo do coração, é de ir para a casa que sua família tem na serra, acender a lareira, ler e comer chocolate – se possível por horas a fio – deitada no colo do Roberto enquanto ele assiste netflix e o Léo dorme, deixando os dois sossegados. Nessas horas, ela se arrepende de não ter dormido, lido e visto mais filmes a vida inteira antes do Léo nascer.

Ela trabalha há alguns anos num escritório, revisando contratos. Lá também trabalham outras sete mulheres, todas igualmente bem sucedidas, independentes, bonitas e bem criadas como a Patrícia.

Hoje é terça-feira, são 11 da manhã e Patrícia normalmente fica com fome a essa hora. Normal, ela tomou café às sete. Ela vai até a cozinha, prepara um café com leite, e passa alguns minutos molhando pedacinhos de bolacha Maria no café antes de comer. Chega Beatriz, que pega uma maçã na fruteira, e as duas começam a conversar sobre o seriado que ambas acompanham, compras, livros e amenidades e dão muitas risadas. Em seguida chegam Carina e Andréa.

Carina prepara um chá verde enquanto narra suas aventuras na academia, seu novo vício – quer dizer, hobby. Ela fala sobre o grau de dificuldade de todos os aparelhos e quantas calorias perde por segundo em cada um deles. Sim, por segundo. Abre o armário de bolachas. Tira de dentro as mesmas bolachas que Patrícia está comendo. As mesmas que estão lá todos os dias, semana após semana, mês após mês, ano após ano. Ela tira uma fina bolachinha do pacote e dá uma mordida. Três segundos depois, diz:

– Vocês sabem que essa bolacha é péssima pro quadril, né? Eu nem deveria estar comendo, mas é só porque hoje vou fazer um treino especial. – justifica-se.

Beatriz se cala e Andréa endossa:

– Ai, nem sonho mais em comer trigo. Porque depois tenho que sofrer muito na academia.

Patrícia tem a nítida impressão de que já ouviu essa mesma conversa inúmeras vezes antes e, como sente que tem muito pouco, ou melhor, absolutamente nada, a contribuir com ela entra em modo standby (que é quando a pessoa assente com a cabeça periodicamente, mas está realmente em seu próprio universo paralelo).

Ela começa pensando no Léo, em como ele tem aprendido várias palavras novas realmente rápido. Pensa em como o Roberto estava lindo hoje de manhã com aquela camisa azul e sente vontade de mandar um whatsapp pra ele, só pra dizer. No almoço que marcou com seus pais no sábado e em como eles, em especial seu pai, ficam incrivelmente encantados em ver o Léo, porque ele é realmente o bebê mais lindo do mundo inteiro. Na roupa que eles esqueceram dentro da máquina hoje de manhã, em se fecharam todas as torneiras, apagaram as luzes… se trancou a porta, trouxe a chave, precisa passar no banco. Ai, não! A conta de água vence hoje, com certeza o Roberto não vai lembrar. Ela vai ter que cuidar disso na sua hora de almoço.

E depois desse lapso no tempo-espaço, ela começa a voltar à cozinha do escritório. Carina ainda fala sobre a própria bunda. Sobre como se preocupa e gostaria que ela fosse menor, e todos os exercícios que são bons para a conquista e manutenção de uma bunda pequena.

Patrícia chega à beira do desespero porque esse nível de demência é absolutamente intolerável numa terça-feira de manhã antes mesmo do almoço, e ainda por cima a seco, sem nem uma gota de vinho ou similares.

O que a incomoda sobremaneira não é o fato de que ela mesma, assim como a Beatriz que também escuta calada, têm muito mais quadril que a reclamante, e que logo, tudo o que a Carina está dizendo é extremamente indelicado, presunçoso e desagradável. Patrícia realmente já atingiu o nirvana em relação ao próprio corpo e nada, nem ninguém conseguiriam desestabilizar sua autoestima e convencê-la de que ela seria mais bonita de outro jeito. Nem com silicone, nem com as pernas mais finas, nem com o abdome riscado, nem com a bunda sem celulite daquela atriz que fez uma cena pelada. Mesmo depois de ter o Léo, e meu deus, como o corpo dela mudou depois disso.

O que realmente tira a Patrícia do seu eixo e traz os seus piores instintos assassinos à tona é constatar que uma mulher da sua idade, com os mesmos recursos intelectuais, sociais e culturais, cultive dentro do seu ser essa mentalidade tão pobre, machista e infeliz em relação à própria imagem – semelhante à que a Patrícia tinha aos 15 anos, quando revistas de moda e fofoca ainda eram referência de qualquer coisa na vida dela.

Patrícia pensa que mulheres assim não são uma afronta apenas ao feminismo, ou à sociedade, ou à biologia da espécie humana, mas ao próprio Charles Darwin. Porque as coisas não deveriam “involuir”, certo?

Então, sem forças para expressar o quanto aquilo tudo é tedioso e digno de vômito, levanta-se para voltar à sua mesa. Porém, antes de ir, com um sorrisinho, lembra-se de um fato importante sobre Darwin e sobre a vida: até aqueles monstrinhos/robozinhos japoneses de desenho animado evoluem e tornam-se mais fortes e capazes. Logo, ainda deve haver alguma esperança para mulheres como Carina e Andréa.

Assim esperamos, Patrícia.

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