As crônicas verdadeiras sobre as notáveis mulheres normais 2. Eulália

Hoje Eulália comemora 60 anos.

São ainda oito da manhã e ela acabou de acordar com o telefonema da Rose, uma amiga querida de muitos anos, que por alguma razão sempre que liga acorda alguém na casa – desde a época em que os filhos da Eulália eram adolescentes e ainda moravam lá.

E durante o dia serão muitos telefonemas mais, porque Eulália é realmente muito querida.

Ela está muito feliz: adora fazer aniversário. Vai encher seu dia de pequenos mimos como estrear uma blusa nova, ir na manicure, passar na confeitaria e, mais tarde, seus pais, já bem velhinhos mas tão queridos, vêm comer uma pizza com ela. Eles e o resto da família também, porque fartura e família é o que nunca falta na casa da Eulália. A única que não vem é a filha dela, que é surfista profissional e mora na Austrália. Mas tudo bem também, porque elas já combinaram de fazer um Skype bem na hora da festa pra ficar aquele auê e ninguém conseguir ouvir nada. Porém, tudo muito gostoso, com muito carinho, porque cada cantinho da casa da Eulália é agradável e aconchegante.

Aconchego na casa, conforto na vida. Ela não sabe o que é um sapato desconfortável há mais de dez anos. Nem se for só pra ir naquele casamento. De jeito nenhum, sem chance. Ela tem o cabelo todo cacheadinho e nunca quis alisar. Nem nos anos noventa, quando os três fios de cabelo que a Kate Moss tem na cabeça eram a coisa mais linda do mundo (?????). Não, o que ela gosta é de lavar e deixar secar ao vento, bem rebelde, bem enrolado, bem natural, bem à vontade. Cuidar da beleza pra ela é necessariamente algo confortável – ela deu muita risada quando a dermatologista sugeriu botox. Nem pensar, nada de agulhas, nem bisturis, nem pesos, muito menos privações alimentares.

Mas ela não vive sem suas aulas de pilates, aonde ela se espreguiça como um gato e demonstra uma suave descoordenação motora, e seu pote de lancôme antes de dormir.

Eulália não pensa muito sobre a sua idade como fazem as moças bem mais novas que ela, entrando em pânico ao chegar nos quarenta ou mesmo nos trinta. Ela não tem vergonha de absolutamente nada no seu corpo, nem no seu rosto. Nem das escolhas que faz na vida. Não toma outras mulheres – muito menos celebridades – como referência de beleza, ou de qualquer outra coisa. Porque isso simplesmente não faz nenhum (nenhum!) sentido. Ela passa inerte pelas páginas de revista de beleza e fofoca, de onde só extrai algumas dicas de decoração, viagens… E às vezes dá uma olhada no horóscopo porque é tão engraçadinho.

Também A-DO-RA as novas tecnologias. Tem o melhor smartphone de toda a família e posta nas redes sociais fotos que depois nem ela mesma lembra que postou, e que nunca consegue remover (para pânico dos filhos e “tagueados” envolvidos). E se tiver uma postagem de um dos seus filhos, Eulália está lá, dando o primeiro “curtir”, e se bobear comentando também, com dizeres nada constrangedores tais como “lindinho da mamãe” ou “minha flor de maracujá”. Ela também já colocou alguns (vários) vírus (letais) no computador da casa, perdeu arquivos importantes e deletou pastas de fotos inteiras.

E suas faxinas, então? Ah, as faxinas são famosas! Internacionalmente conhecidas por, magicamente, transportar coisas a universos paralelos, porque a Eulália nunca (nunquinha da silva) perde nada. As pessoas é que são muito desorganizadas e os objetos, obviamente, dotados de poderes paranormais. E quando ela troca o nome das coisas e fala tudo errado, na verdade é você que não está entendendo a piada, porque é tudo de caso pensado.

Mas também, gente, mesmo se não fosse, convenhamos… como ela mesma diz: é tanta coisa na cabeça dela!

A gente entende Eulália. E perdoa. Você é demais, mesmo.

As crônicas verdadeiras sobre as notáveis mulheres normais 1. ANA PAULA

Ana Paula nunca brincou de casinha.

E ninguém jamais disse pra ela não brincar; na verdade, as pessoas ao redor dela provavelmente nem notaram que “dona de casinha” não era parte do repertório de personagens dela. Mas ela podia se transformar a qualquer momento em enfermeira, secretária, professora, modelo de passarela, cantora, lutadora de karatê, pirata em caça ao tesouro, cabelereira, na própria mãe e até na She Ra.

Mas brincar de casinha… não fazia o menor sentido pra ela.

Quando brincava com suas panelinhas e colhia os matinhos e frutas do quintal da sua avó, era porque naquele dia ela era cozinheira de um restaurante, de um banquete da realeza ou, melhor ainda, havia dias em que ela podia ser uma ajudante de cozinha de primeira da vovó e mexer na comida de verdade.

Com as bonecas era um troca-troca de roupas sem fim porque a Barbie era realmente muito ocupada e tinha mil compromissos no mesmo dia já que trabalhava na televisão ou num escritório/hospital muito importante. Coitada, tinha dias em que ela só via o Ken à noite.

Ana fica muito intrigada quando as moças da sua idade (vinte e muitos) lhe descrevem sua vida sempre em torno de uma casa, de um homem, do desejo, ou melhor, da obsessão, em ter um bebê ou em torno dos três – o que é mais frequente.

Ela escuta aquelas histórias intermináveis sobre a preparação do jantar da terça-feira, aprende sobre todos os gostos do marido alheio, temores (pavores) sobre como é mais difícil engravidar depois dos trinta e técnicas de organização de armários. E ela escuta tudo isso, não por masoquismo, nem por mera educação. Não, Ana Paula é uma otimista. Ela tem esperança de que um dia estas narrativas tão, mas tão enfadonhas, atinjam o seu clímax. Ela aguarda ansiosamente o dia em que haverá uma reviravolta durante o jantar e ao invés de falar sobre o macramê dos porta-guardanapos, as moças terminem fazendo-a chorar de rir com uma receita tão mal sucedida que fez o prédio inteiro vomitar só com o cheiro, sobre como colocaram fogo na cozinha, beberam tanto vinho que acabaram comprando passagens pra Letônia ou fizeram sexo no sofá com a janela aberta. Relatos que permitissem à Ana deduzir que esses maridos são, na verdade, companheiraços, e que esses apartamentos recém decorados são lares cheios de alegria com o amor desses casais. E que o casamento é uma coisa legal pra caramba, apesar dos problemas.

Mas esse dia nunca chegou. São sempre largas Odisseias sobre governança doméstica cujos personagens coadjuvantes são centros de mesa, sousplats, pátina, badejos…

Os ferozes peixeiros do mal.

Os ferozes marceneiros do mal.

Ana Paula sente um desconfortável amargor na boca quando pensa nas mulheres da sua geração.