As crônicas verdadeiras sobre as notáveis mulheres normais 6.Rita

Hoje é sábado. Rita está na cozinha com sua neta de 7 anos, a Rafaela.

Há duas batedeiras sobre a mesa: a de Rita (uma relíquia dos anos 60, que ainda funciona e que ela nunca trocou por uma nova justamente por isso) a de Rafaela (um terço do tamanho da outra, cor-de-rosa, funciona a pilha).

Os ingredientes estão todos dispostos diante das duas – ovos, farinha, açúcar, leite, baunilha, erva-doce… Rita os distribui, cuidadosamente, em pequenos potinhos e os deixa ao lado de Rafaela. Ensina a neta a quebrar os ovos sem estragar a gema. A criança observa todos os movimentos da avó, cozinhar é a coisa mais legal do mundo.

Em sua batedeira, Rita vai colocando os ingredientes devagarzinho, quantidades medidas a olho enquanto conversa com a neta.

Rafaela escuta, acompanha a vó com os olhos e vai pondo os conteúdos dos potinhos dentro de sua própria batedeira. Inclusive a gema que a avó separou da clara especialmente numa cumbuquinha fácil para a Rafaela manusear.

Chega o momento mais aguardado pela menina: ligar o brinquedo novo. E ele funciona mesmo!

Massas batidas, bolos no forno (Rita colocou a massa da neta numa forminha de empada). Rafaela está encantada. É o primeiro bolo que ela faz sozinha. É uma das primeiras coisas que ela faz de forma independente (ou quase, mas que para ela é uma enorme conquista). Naquela forminha está o resultado da mistura que ela fez, na própria batedeira. É por essas e outras que a casa da avó é o melhor lugar que existe, e onde ela gostaria de estar o tempo todo. Lá ela pode perguntar, realizar, dizer, entrar e sair livremente. Lá não existe hora errada ou pergunta errada ou vontade errada; só há o certo e o errado, com exemplos vivos, reais.

Rafaela ainda não sabe, e não tem idade para entender, mas as lições da avó nesta manhã na cozinha vão muito além de proporções, receitas, texturas, cheiros… O aprendizado real está no que a avó não verbaliza ao explicar a ordem dos ingredientes, nas esperas entre um passo e outro da receita, na louça que ficou muito maior e no tempo descomunal gasto só pra fazer um pão de ló.

Rita, em sua docilidade de riso fácil, na mansidão que tem com a neta – e com mais ninguém – lhe ensina o valor da paciência com o tempo do outro. Da importância do carinho no fazer. Da imensurável beleza que existe na capacidade de desprender-se de si mesmo e, sem querer absolutamente nada em troca, doar o bem individual mais valioso hoje: o próprio tempo.

Rafaela aprende o que é amar. Essa doação tão generosa, aonde as duas partes se sentem tão bem.

Rita, por sua vez, também é inconsciente de tudo isso. Ela não pondera quantas coisas está deixando de fazer para cozinhar com a Rafaela. Não sabe que está permitindo que a neta se sinta autônoma e capaz desde criança, e no impacto destes momentos pelo resto da sua vida. Não pensa em que criança dá muito trabalho, nem que ocupa um tempo excessivo e que fala demais. Nem em se a Rafaela vai usar essa receita depois e perpetuar tradições culinárias da família, casar, ter filhos, ser médica/advogada/dentista/administradora de empresas/dona de casa. Rita não conhece o feminismo e nem o machismo.

Rita apenas pensa que Rafaela deve ser feliz. Talvez como ela mesma não tenha podido ser nessa mesma idade, pela época ou por tantas circunstâncias. E é por isso que amamos tanto a Rita. Por que gente como ela, quase não existe mais.

Se é que um dia existiu.